9 de ago. de 2010

nós habitamos as cidades. as cidades habitam em nós.*

Natali Ikikame



















Era como ver a definição de “ausência” no dicionário.
Sempre tenho essa impressão quando percebo seja em janelas ou pátios de casas, algum idoso. O seu olhar marcado pelo tempo, ora vago, ora inquieto, que não deixa escapar muito, só me remete enfim, ao enigmático.  Se existisse um dicionário das “palavras e seus conceitos imagéticos”, esse talvez fosse um bom exemplo, por assim dizer, da palavra “ausência”. Mas me ocorre também, o contrário. O lado “cheio” da ausência. Não se trata aqui de polos opostos, mas de pontos de encontro.  
A ausência na sua contingência

Seriam, pois, tais personagens tão cotidianos e ao mesmo tempo tão “invisíveis” no ambiente urbano, extensões de nós mesmos? Extensões de nossos desejos, medos, amores... Nossas identidades? O que é afinal identidade? Conhecer o seu lugar? Conhecer o seu valor? A reconciliação entre a imagem que criamos de nós mesmos e “nós mesmos”?  Mas quem seria esse “nós mesmos? Uma imagem projetada e que tentamos nos aproximar? Máscaras que desconfiam do sentido puro: ela quer sentido, mas ao mesmo tempo quer que esse sentido seja cercado pelo ruído.

Para além de seu entendimento enquanto um aglomerado de ruas, favelas, casarios, praças, mangueiras, letreiros, fachadas, até mesmo o vestuário ou ornamento com que as pessoas se movem e recitam a sua parte na dimensão cênica da cidade, as cidades não poderiam ser somente seus objetos, mas também, os que a habitam. A massa. O indivíduo. O coletivo. O privado. Extensões humanas. Extensões de vidas. A cidade é o coração e a condição de nossa existência hoje.

As pessoas compõem o cenário urbano. A cidade reflete as pessoas que transitam seu espaço, seu lugar. Como seria uma cidade destituída do seu fator cultural? Ausente dos elementos que nela despejam significados e sentidos? Atget1 talvez já tenha nos proporcionado tal sensação. Uma cidade sem seus habitantes é uma cidade fantasma. Embora tal experiência nos transporte para uma dimensão outra. Uma percepção fenomenológica e onírica do espaço urbano. O silêncio enquanto possibilidade
de fruição. O apagar das luzes.

Contudo, ao refletirmos o seu inverso, a cidade parece diluir-se. Porque assim como a ausência das pessoas causa estranhamento, sua onipresença nos desloca para uma quase vertigem. O “controle” nos escapa. A cidade adquire vida e independência. Seus personagens dialogam com o concreto, com o infinito dos becos. Talvez essa seja a singularidade do espaço urbano. Abarca em seu território muito mais  que a alteridades dos pares, mas a eloqüência dos ímpares. 

A loucura, a sanidade, a alienação, a inocência, a solidão, a multidão... O viver citadino não escolhe seus personagens. Todos estamos submersos no líquido que flui pelas ruas, elevadores, calçadas, portas...O separar e o ligar são apenas dois aspectos de um mesmo e único ato. Assim, convivemos. Como os moradores que habitam o Hotel de Um Milhão de Dólares de Wenders2. Muito mais que personagens excêntricos, os moradores do One Million Dollar Hotel são um reflexo de nossa sociedade. Um espelho que transcende a ficção. 

O estigma do movimento está na cidade. O movimento é quase sempre, veloz. Quando se pensa estar em um lugar, simplesmente não o é mais. A cidade nos envolve em seu fluxo. É um (des)encadeamento de episódios, de cenas. Mesmo sendo uma percepção inerente a sua natureza, não podemos ignorar o sentido nostálgico que o tempo apreendido pela cidade nos desencadeia. É como algo que desaparece e, se você passar muito tempo sem pensar nele, não haverá de trazê-lo de volta. Recordar não é um ato de vontade afinal. É algo que ocorre a despeito de nós, e, quando há muita coisa mudando ao mesmo tempo, o cérebro vacila e os objetos lhe escapam. 

A dimensão temporal. São olhos que já viram e foram vistos. Talvez esse seja um dos fatores que fazem das pessoas idosas um relicário a ser notado. Um personagem urbano que conhece os endereços com a palma da mão (ou ao menos persistem em conhecer). O sujeito não é senão o agente da desaparição das coisas. E essa percepção de perda e ausência que vem atrelado às pessoas, que nos move a pensar em nosso lugar. Em nossa condição no mundo. Num tempo mais lento. Um banco na praça.

*Texto apresentado à disciplina Arte no Espaço Urbano orientado pelos professores Dr. Luizan Pinheiro e Dr. Ubiraélcio Malheiros do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará – PPGArtes – ICA/UFPA como requisito de avaliação.

1Eugène Atget (Paris12 de fevereiro de 1856 ou 1857 - 4 de agosto de 1927) - Foi um fotógrafo francês que com seu olhar desviado do ser humano, fotografava o vazio das ruas parisienses, e objetos inusitados.

2Wim Wenders (Düsseldorf,  14 de agosto de 1945) – É um cineasta alemão que aborda em muitos de seus filmes a temática da cidade e o espaço urbano enquanto depósito de subjetividades.

REFERÊNCIAS

ARGAN, Giulio Carlo. A História da Arte como História da Cidade.
Trad. Pier Luigi Cabra – 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

AUSTER, Paul. No país das últimas coisas. Trad. Luiz Araújo. São Paulo:
Editora Best Seller, 1987.

BARTHES, Roland. A Câmara Clara: Nota sobre a fotografia.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. Trad. Anamaria Skinner.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ N Imagem, 1997.

COELHO, Teixeira. Arte na Metrópole. In: Revista BRAVO. A Bienal da Cidade.
São Paulo, nº 54, março de 2002 - Ano 5.

WENDERS, Wim. A identidade de Nós Mesmos – Documentário 84min., 1982.





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