Era como ver a definição de “ausência” no dicionário.
Sempre tenho essa impressão quando percebo seja em janelas ou pátios de casas, algum idoso. O seu olhar marcado pelo tempo, ora vago, ora inquieto, que não deixa escapar muito, só me remete enfim, ao enigmático. Se existisse um dicionário das “palavras e seus conceitos imagéticos”, esse talvez fosse um bom exemplo, por assim dizer, da palavra “ausência”. Mas me ocorre também, o contrário. O lado “cheio” da ausência. Não se trata aqui de polos opostos, mas de pontos de encontro.
A ausência na sua contingência.
Seriam, pois, tais personagens tão cotidianos e ao mesmo tempo tão “invisíveis” no ambiente urbano, extensões de nós mesmos? Extensões de nossos desejos, medos, amores... Nossas identidades? O que é afinal identidade? Conhecer o seu lugar? Conhecer o seu valor? A reconciliação entre a imagem que criamos de nós mesmos e “nós mesmos”? Mas quem seria esse “nós mesmos”? Uma imagem projetada e que tentamos nos aproximar? Máscaras que desconfiam do sentido puro: ela quer sentido, mas ao mesmo tempo quer que esse sentido seja cercado pelo ruído.
A ausência na sua contingência.
Para além de seu entendimento enquanto um aglomerado de ruas, favelas, casarios, praças, mangueiras, letreiros, fachadas, até mesmo o vestuário ou ornamento com que as pessoas se movem e recitam a sua parte na dimensão cênica da cidade, as cidades não poderiam ser somente seus objetos, mas também, os que a habitam. A massa. O indivíduo. O coletivo. O privado. Extensões humanas. Extensões de vidas. A cidade é o coração e a condição de nossa existência hoje.
As pessoas compõem o cenário urbano. A cidade reflete as pessoas que transitam seu espaço, seu lugar. Como seria uma cidade destituída do seu fator cultural? Ausente dos elementos que nela despejam significados e sentidos? Atget1 talvez já tenha nos proporcionado tal sensação. Uma cidade sem seus habitantes é uma cidade fantasma. Embora tal experiência nos transporte para uma dimensão outra. Uma percepção fenomenológica e onírica do espaço urbano. O silêncio enquanto possibilidade
de fruição. O apagar das luzes.
Contudo, ao refletirmos o seu inverso, a cidade parece diluir-se. Porque assim como a ausência das pessoas causa estranhamento, sua onipresença nos desloca para uma quase vertigem. O “controle” nos escapa. A cidade adquire vida e independência. Seus personagens dialogam com o concreto, com o infinito dos becos. Talvez essa seja a singularidade do espaço urbano. Abarca em seu território muito mais que a alteridades dos pares, mas a eloqüência dos ímpares.
A loucura, a sanidade, a alienação, a inocência, a solidão, a multidão... O viver citadino não escolhe seus personagens. Todos estamos submersos no líquido que flui pelas ruas, elevadores, calçadas, portas...O separar e o ligar são apenas dois aspectos de um mesmo e único ato. Assim, convivemos. Como os moradores que habitam o Hotel de Um Milhão de Dólares de Wenders2. Muito mais que personagens excêntricos, os moradores do One Million Dollar Hotel são um reflexo de nossa sociedade. Um espelho que transcende a ficção.
O estigma do movimento está na cidade. O movimento é quase sempre, veloz. Quando se pensa estar em um lugar, simplesmente não o é mais. A cidade nos envolve em seu fluxo. É um (des)encadeamento de episódios, de cenas. Mesmo sendo uma percepção inerente a sua natureza, não podemos ignorar o sentido nostálgico que o tempo apreendido pela cidade nos desencadeia. É como algo que desaparece e, se você passar muito tempo sem pensar nele, não haverá de trazê-lo de volta. Recordar não é um ato de vontade afinal. É algo que ocorre a despeito de nós, e, quando há muita coisa mudando ao mesmo tempo, o cérebro vacila e os objetos lhe escapam.
A dimensão temporal. São olhos que já viram e foram vistos. Talvez esse seja um dos fatores que fazem das pessoas idosas um relicário a ser notado. Um personagem urbano que conhece os endereços com a palma da mão (ou ao menos persistem em conhecer). O sujeito não é senão o agente da desaparição das coisas. E essa percepção de perda e ausência que vem atrelado às pessoas, que nos move a pensar em nosso lugar. Em nossa condição no mundo. Num tempo mais lento. Um banco na praça.
*Texto apresentado à disciplina Arte no Espaço Urbano orientado pelos professores Dr. Luizan Pinheiro e Dr. Ubiraélcio Malheiros do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará – PPGArtes – ICA/UFPA como requisito de avaliação.
1Eugène Atget (Paris, 12 de fevereiro de 1856 ou 1857 - 4 de agosto de 1927) - Foi um fotógrafo francês que com seu olhar desviado do ser humano, fotografava o vazio das ruas parisienses, e objetos inusitados.
2Wim Wenders (Düsseldorf, 14 de agosto de 1945) – É um cineasta alemão que aborda em muitos de seus filmes a temática da cidade e o espaço urbano enquanto depósito de subjetividades.
REFERÊNCIAS
ARGAN, Giulio Carlo. A História da Arte como História da Cidade.
Trad. Pier Luigi Cabra – 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
AUSTER, Paul. No país das últimas coisas. Trad. Luiz Araújo. São Paulo:
Editora Best Seller, 1987.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: Nota sobre a fotografia.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. Trad. Anamaria Skinner.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ N Imagem, 1997.
COELHO, Teixeira. Arte na Metrópole. In: Revista BRAVO. A Bienal da Cidade.
São Paulo, nº 54, março de 2002 - Ano 5.
WENDERS, Wim. A identidade de Nós Mesmos – Documentário 84min., 1982.
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