9 de ago. de 2010

AGLOMERAÇÃO E VAZIO NA PAISAGEM URBANA

Junio Costa*

A dinâmica metropolitana opera uma obstrução de todo sentido de continuidade espacial. Tudo o que se tem são formas dispostas sem proporção nem medida comum. Nesse espaço, dominado pelo caos e pela turbulência, cada local não tem mais um tecido no qual se encaixar. Espaços fraturados que remetem sempre para outro lugar. Vazios testemunhando atos de remoção. O interstício é o paradigma da metrópole contemporânea.
Nelson Brissac Peixoto, Paisagens Urbanas

Há rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros.
Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mil Platôs vol.1


Intervenção e planejamento urbano são termos íntimos à ciência do urbanismo. Significam as alterações, projetos, programas e redefinições do espaço da cidade, segundo sua estrutura e/ou segundo sua estética. Referem-se sempre a uma cultura de projeto e desenho, uma cultura técnica de design urbanístico. Historicamente, grandes intervenções urbanísticas foram realizadas, como a de Haussmann em Paris e de Ildefonso Cerda em Barcelona. Porém, a cidade, enquanto concentração de fluxos diversos do pensar e criar humanos, também se torna objeto de outros tipos de “interventores”. Atualmente, cada vez mais artistas, de forma individual ou coletiva, atuam nas cidades e metrópoles. A intervenção urbana, com isso, passa a significar também a produção de atividades artísticas de naturezas diversas sobre o cenário urbano, público, que se manifestam em inúmeras possibilidades, desde simples cartazes colados pelos centros, performances individuais, “flash mobs”, até alterações estruturais na sua paisagem.

“A sociedade industrial é urbana. A cidade é o seu horizonte”. [1]

Para se atuar na cidade, na paisagem urbana, não basta apenas viver nela, também é preciso conhecê-la mais intimamente, especificar suas possibilidades, características, fluxos, territórios e agentes. Neste ensaio, pretendo abordar dois elementos fundamentais e formadores da paisagem das cidades:os espaços de aglomeração e os espaços do vazio, elementos estes que considero matrizes não apenas dos fluxos criativos, mas também da própria essência da existência urbana, sua forma, memória, abstração.

A aglomeração e o vazio: as duas faces de uma moeda.

Na paisagem urbana a aglomeração e o vazio estabelecem os campos de força, fluxos e suportes para as quais se voltam as experiências estéticas e poéticas dos artistas, agora, também, interventores, conscientes disto ou não. Também determinam certos modelos de ocupação, intervenção e planejamento urbano. As pessoas do lugar possuem relações diversas com um e com outro. Geralmente se prefere o espaço da aglomeração para o desenvolvimento das atividades sociais, econômicas e culturais. Por outro lado, se delega o vazio ao campo do inexistente, do indefinível, do vácuo, do não-lugar: o vazio do Buraco da Palmeira, por anos abandonado, transformado em receptáculo do lixo, da flora caótica urbana, refúgio de vagabundos e marginais, em contraste com a aglomeração da Presidente Vargas/Praça da República, espaço das tribos, dos religiosos do círio, das marchas de Sete de Setembro, dos protestos e das celebrações da paz.

 Aglomeração de pessoas na Praça da República.

Existem diversos tipos de aglomerações ou conurbações [2] urbanas: há aglomerações de pessoas, de veículos, de tribos urbanas, de edificações. Da mesma forma há diversos tipos de vazios: vazios de pessoas no espaço arquitetônico, vazios de edificações nos terrenos, vazios de veículos em ruas e “parkings”. Porém a sua característica mais importante é a da perda de referências. Na ausência de elementos referenciais, o vazio se torna a própria referência na paisagem. Enquanto que nas aglomerações, como processo natural de orientação em meio à complexidade, torna-se absolutamente necessária a eleição de referenciais (falo aqui principalmente em termos arquitetônicos).


Parking vazio em Niagara Falls, EUA.

No geral, as metrópoles representam a pura conurbação. Os vazios parecem se manifestar, por outro lado, como células-refúgio espalhadas caoticamente pelo seu território. Durante muito tempo observei esses refúgios na paisagem urbana de Belém, aos quais chamei de “paraizos”, em referência ao andar mais alto do Teatro da Paz. Notei que esses lugares vazios (vazios de edificações ou vazios de pessoas) eram bons locais para leitura, meditação ou simplesmente estações de descanso e fuga das aglomerações urbanas. O vazio urbano é como o seio da lactante, sempre pronto para oferecer aconchego, mas também tão incerto quanto a vagina da prostituta, onde se encontra não apenas as possibilidades de prazer, mas também o lugar do perigo, onde pequenos grupos de excluídos, marginais, que também buscam o refúgio, encontram no espaço vazio o lugar de morada.

A ocupação do vazio: o espaço de combate.

O aspecto vazio da metrópole é repelente e estéril. A aglomeração é sedutora e fértil. O coletivo busca a aglomeração, mesmerizada pela dinâmica. O coletivo evita, repugna o vazio. Porém, como campo negativo, o vazio urbano reflete os ecos da coletividade. Nesse âmbito, insere-se num sentido de campo gerador, matriz, prenhe de toda dinâmica e intensidade. Nelson Brissac Peixoto, ao refletir o papel do vazio na paisagem urbana diz que ele “(...) contém também a expectativa da mobilidade, a possibilidade do outro. O terreno vago é também o espaço do possível. Toda história da reação ao terreno vago, desde a percepção dos fotógrafos até as intervenções do planejamento urbano, tem sido no sentido de evidenciar a ansiedade diante da sua indefinição e erradicar sua negatividade. Ela reflete a dificuldade de lidar com a cidade em termos de forças, fluxos, em vez de formas” [3]. Então podemos compreender por que o elemento vazio da paisagem aqui também pode ser estabelecido como o espaço de combate contra a especulação e a necessidade de ocupação destes lugares pelas forças de intervenção pública ou privada. Por outro lado, pode-se perguntar: “O vazio, por fazer parte do cenário urbano, também não se insere no coletivo?” Não, a aglomeração é coletiva. A experiência do vazio tende ao individual.
Há vazios nas cidades em que a especulação imobiliária não tem acesso e talvez nunca terá. Esses vazios são os espaços das praças antigas cravadas no meio de bairros ou zonas de preservação histórica ou áreas portuárias, muitas vezes zonas sem qualquer atividade comercial, zonas residenciais de baixa densidade, ruas do centro histórico em que a vizinhança é introspectiva e reclusa.


Praça vazia no centro comercial de Belém.

Consideremos que toda intervenção significa a interferência em algo, então devemos estar conscientes do lugar de nossa intervenção. Na paisagem urbana não há apenas os espaços de aglomeração e de vazios, mas também espaços intersticiais onde as características de um e de outro se manifestam, seja de forma perene, seja de forma transitória. Num certo sentido, por ser a intervenção um sinônimo de interferência, para muitos artistas parece não importar o lugar dessa interferência: o que importa é “interferir”. E o público dessa interferência parece ser sempre a aglomeração, numa celebração da cultura de massas, pois no vazio não há publico, porém abandono, indiferença, o lugar da descongestão, o no man’s land do qual fala Wim Wenders sobre a paisagem urbana [4]. Poucos realmente se aventuram nos espaços vazios.
Um aspecto que denota uma falsa noção de espaço vazio das metrópoles diz respeito às zonas fora das cidades, suas bordas, os arredores livres, fora dos centros urbanos, até mesmo zonas industriais. Esses espaços estão mais relacionados com a “geologia abstrata” de Robert Smithson [6], cujas obras se relacionam exclusivamente com lugares ermos, não-habitados, nos limites do rural, mais ainda próximo da metrópole, porém suficientemente fora da sua paisagem para se designá-los como vazios urbanos. Os vazios urbanos possuem um sentido quase rizomático de complexidade que os tornam diferentes dos espaços livres rurais. Quanto mais nos afastamos dos centros urbanos, abandonando os limites da vida metropolitana, adentramos nos territórios marcados pela monotonia, até que eles se transformem totalmente em meio rural. Tais espaços, explorados por Robert Smithson em “The Monuments of Passaic” e por Richard Serra em “Shift” (Deslocamento), sendo o primeiro nos arredores de New Jersey e o segundo nos arredores de King City, Ontário, são desprovidos de qualquer urbanidade, o que torna tais espaços como zonas-refúgios DA cidade e não como zonas-refúgios NA cidade.


Robert Smithson – The Monuments of Passaic, 1967.

Aglomeração – Vazio – Arte – Cidade.

Gostaria de propor, com este ensaio não somente uma reflexão sobre os espaços de aglomeração e vazio dos cenários urbanos, mas também uma “cartografia do refúgio”, ou uma Cartografia do Vazio, mapeando todos esses lugares em potencial, registrando suas características, peculiaridades territoriais, fluxos e agentes (habitantes, fauna, flora etc.).
Expor na cidade vem se tornando uma opção para artistas que vêem nas aglomerações urbanas, mesmo em suas reações mais indiferentes, um público para suas intervenções. O espaço da galeria, espaço individual e institucional, torna-se inadequado. Buscar a aglomeração urbana tem sido um paradigma para a arte contemporânea em busca de visibilidade, de dinâmicas e de intensidades.
A arte da cidade, a arte pública no espaço urbano enquanto tal é um processo de devir incessante, ininterrupto. Isso se deve pela condição metropolitana de receber fluxos de ordenamento e caos, que Adrián Gorelik, ao falar de Rem Koolhaas em seu prefácio a Nova York Delirante, define como “o máximo de controle para o máximo de descontrole” [5]. Atuar nessa paisagem se encontra na postura reflexiva de cada um pronto para tanto. Da mesma forma como adentrar uma galeria denota uma predisposição do observador em contemplar a obra de arte, na cidade sua arte exige a predisposição para a sua percepção: no silencio do observador, no momento fugaz do pensador-amante da arte no cenário urbano.
Ainda na metáfora com a galeria, a metrópole da aglomeração é a vernissage da exposição de arte, onde todos se encontram, numa balbúrdia de sentidos, interesses e dinâmicas. Dessa forma, retiram-se o que é comum às ruas e colocam-se na galeria, e como retroalimentações retiram-se a pintura, a escultura e a instalação da galeria e espalham-se pelo espaço público da cidade. Desenvolve-se assim uma “arte e estética relacional” de cuja evolução Nicolas Bourriaud, de forma precisa, estabelece dentro dos limites do urbano:
“Em termos sociológicos gerais, essa evolução deriva, sobretudo, do nascimento de uma cultura urbana mundial e da aplicação desse modelo citadino a praticamente todos os fenômenos culturais. A urbanização generalizada que se desenvolveu após o final da Segunda Guerra Mundial permitiu um aumento extraordinário dos intercâmbios sociais e uma maior mobilidade dos indivíduos (graças ao desenvolvimento rodoferroviário e das telecomunicações e à progressiva abertura dos locais isolados, simultaneamente a uma maior abertura das mentalidades).” [7]
Sendo assim, podemos considerar os mesmos processos de devir espacial, fluxos sociais e fenômenos coletivos no jantar servido numa galeria por Rirkrit Tiravanija, na sopa servida numa feira pelo feirante ou na prática de grupos de caridade que servem comidas a mendigos numa rua do centro após o expediente comercial. A diferença se insere no contexto do suporte, da intenção e de um conceito: Tiravanija tem a galeria, quer subverter usos, quer desenvolver uma nova estética; o feirante atua no bairro, na rua, na feira e nada quer senão o comércio; e os caridosos empresários querem ajudar a diminuir o sofrimento humano na cidade. Assim, o conflito entre suportes se encontra instaurado, e imediata e devidamente teorizado no triunfo da pós-modernidade urbana.

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* Arquiteto e urbanista, mestrando em artes pela Universidade Federal do Pará.

Notas.
[1] Françoise Choay. O Urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 1.
[2] Conurbações: neologismo criado por Patrick Geddes no seu livro Cities in Evolution (1915) para designar aglomerações urbanas, cidades-satélites e outros agregados urbanos que se desenvolvem devido ao poder atrativo da metrópole.
[3] Nelson Brissac Peixoto. Paisagens Urbanas. São Paulo: SENAC, 2004, p. 398.
[4] Wim Wenders. A Paisagem Urbana. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, p. 189.
[5] Rem Koolhaas. Nova York Delirante: um manifesto retroativo para Manhattan. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 12.
 [6] “(...) Vários agentes, tanto ficcionais quanto reais, de alguma maneira trocam de lugar entre si – é impossível evitar o pensamento lamacento quando se trata de projetos de terra, ou daquilo que chamarei de ‘geologia abstrata’. A mente e a terra encontram-se em um processo constante de erosão: rios mentais derrubam encostas abstratas, ondas cerebrais desgastam rochedos de pensamento, idéias se decompõem em pedras de desconhecimento, e cristalizações conceituais desmoronam em resíduos arenosos de razão.” Robert Smithson. Em: Escritos de Artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro, 2006, p. 182.
[7] Nicolas Bourriaud. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009.

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