10 de ago. de 2010

ENTRE BRs




Simone Jares*

Há pouco me dei conta que vivi nestes quarenta anos de existência entre BRs. Vivência marcada pela velocidade, pelos sons e cheiros urbanos.  Taboão da Serra, terra de imigrantes, principalmente de japoneses e nordestinos, situa-se nessa imensa via que comunica São Paulo às cidades do sul e vice-versa. Morei toda minha infância na ilharga da “Rodovia da Morte”, era assim que a BR-116 - a Régis Bittencourt - era noticiada nos jornais da década de 70. Inaugurada por JK, símbolo do desenvolvimento e integração do sudeste ao sul do país! Só quem viveu por lá, pôde entender a outra face do desenvolvimento... Lembranças lamacentas das enchentes do Pirajussara que atravessaram a vida de tantas famílias, inclusive a minha. Durante horas, esperávamos a água baixar. Misturados aos eletrodomésticos, brincávamos no segundo andar do beliche. Tensão e alívio: passamos por mais uma! Nas paredes de casa, as marcações do barro desprendido do morro, testemunhavam a fúria de um rio.  Hoje quando vejo o desespero em cadeia nacional na TV, em torno do mesmo problema da ocupação urbana desordenada, rememoro... com um olhar que perdeu a ingenuidade e a fantasia infantis.

No Taboão, era assim, além das enchentes sazonais, a paisagem serrana rodeada de eucaliptos, contrastava com a paisagem fabril da auto-estrada. Juntos, eu, primos e amigos de rua, andávamos aproximadamente dois quilômetros desse corredor de fábricas que era a BR-116... Massey Fergunson, Sadia, Niasi... até chegar à “Cidade Intercap”, escola que ficava no alto de um morro. Nos primeiros anos de estudante, de manhãzinha, minha avó nos levava e meio-dia, lá estava ela, no portão da escola a nossa espera. No tempo em que soletrava as primeiras letras, devorava tudo pela frente, inclusive os muros pichados pelos quais passava no percurso da escola. Quando tinha um “vai tomar no cu”, minha avó me repreendia ao final da frase, antes que eu experimentasse o prazer de soletrar o “c-u”. Dizia-me que era feio menina falar palavrão.  Ficava chateada com ela, mas obedecia. Depois, crescemos o suficiente para irmos sozinhos sem a presença de um adulto, o que ficava muito mais divertido, porque brincávamos o tempo todo, alheios ao movimento intenso dos carros. 


Ônibus, só pegávamos eventualmente quando íamos até São Paulo para passear ou ir ao médico. Era uma viagem longa de quase duas horas de duração. Praticamente uma viagem até Mosqueiro. Os adultos provedores da casa, minha mãe e tios, saíam ainda de madrugada rumo ao trabalho na capital, só retornando ao final da noite, quando as crianças já estavam na cama. Reunião da família completa, somente nos finais de semana. Cidades como Taboão, naquela época, embora tivessem um parque industrial em expansão, não ofereciam oportunidades de emprego suficientes aos seus habitantes. Vivíamos em uma “cidade-dormitório”, como preconizavam os estudiosos de sociologia urbana.

Ananindeua como Taboão são cidades que se desenvolveram ao longo de uma estrada, não-lugares, referências tão urbanas... Da janela do ônibus, tenho uma outra visão: plana paisagem, contudo, cheiros e sons são os mesmos de meus tempos de infância.  O trânsito não passa despercebido, até o Entroncamento, filas de veículos enlouquecidos. Ansiedade. Todo dia. Essa sensação me acompanha até que adormeço. A cidade está dentro do coletivo. O coletivo é a cidade. Não há como escapar dessa intensa convivência passageira...  Avisto a passarela e a frase (que sempre me faz pensar em sexo) “Mais gostoso a qualquer hora” - do outdoor de um grande supermercado - , avisa a hora de descer do ônibus.

Viver entre BRs tem dessas coisas... certos estranhamentos como se estivéssemos sempre de passagem, em trânsito. Quando minha família retornou a Belém, ainda era uma pré-adolescente, muito aborrecida com a mudança de endereço. Apesar de conhecer a cidade a partir da ótica de uma turista mirim em férias escolares, morar significava recomeçar: aprender novos costumes, fazer novos amigos, deixar-se entranhar pela cultura do lugar. Custava a aceitar que esse envolvimento acontecesse rapidamente. Enganei-me. Atravessar o viaduto da BR-316, foi como passar por um portal que me conectava à infância, às referências de uma migrante. Respirei fundo, sorvendo com vontade aquele cheiro de BR tão familiar... e pensei: estou em casa de novo!



*Trabalho final da disciplina Arte no Espaço Urbano
09/08/2010

9 de ago. de 2010

Diagrama Urbano




A cidade de Belém (Pará - Brasil) em uma representação simplificada de seu espaço físico e simbólico, evidenciada nesse vídeo através de uma narrativa quase anônima de um personagem que por ela transita e que com ela dialoga.

Neste vídeo um taxista conhecido como “Preto” que trabalha há 30 anos pelas ruas de Belém discute questões de segurança pública, política, assistencialismo social, saneamento básico, entre outras.

Dirigindo sem nenhum destino pré determinado este personagem que transita pela cidade todos os dias através da velocidade de seus percursos neste momento nos permite através de seus pensamentos dialogar com este cotidiano urbano em seu espaço e tempo.

Vídeo experimental Apresentado ao Curso de Mestrado em Artes da Universidade Federal do Pará, para a disciplina Arte no Espaço Urbano.


Danielle Valente e Melissa Barbery

AGLOMERAÇÃO E VAZIO NA PAISAGEM URBANA

Junio Costa*

A dinâmica metropolitana opera uma obstrução de todo sentido de continuidade espacial. Tudo o que se tem são formas dispostas sem proporção nem medida comum. Nesse espaço, dominado pelo caos e pela turbulência, cada local não tem mais um tecido no qual se encaixar. Espaços fraturados que remetem sempre para outro lugar. Vazios testemunhando atos de remoção. O interstício é o paradigma da metrópole contemporânea.
Nelson Brissac Peixoto, Paisagens Urbanas

Há rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros.
Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mil Platôs vol.1


Intervenção e planejamento urbano são termos íntimos à ciência do urbanismo. Significam as alterações, projetos, programas e redefinições do espaço da cidade, segundo sua estrutura e/ou segundo sua estética. Referem-se sempre a uma cultura de projeto e desenho, uma cultura técnica de design urbanístico. Historicamente, grandes intervenções urbanísticas foram realizadas, como a de Haussmann em Paris e de Ildefonso Cerda em Barcelona. Porém, a cidade, enquanto concentração de fluxos diversos do pensar e criar humanos, também se torna objeto de outros tipos de “interventores”. Atualmente, cada vez mais artistas, de forma individual ou coletiva, atuam nas cidades e metrópoles. A intervenção urbana, com isso, passa a significar também a produção de atividades artísticas de naturezas diversas sobre o cenário urbano, público, que se manifestam em inúmeras possibilidades, desde simples cartazes colados pelos centros, performances individuais, “flash mobs”, até alterações estruturais na sua paisagem.

“A sociedade industrial é urbana. A cidade é o seu horizonte”. [1]

Para se atuar na cidade, na paisagem urbana, não basta apenas viver nela, também é preciso conhecê-la mais intimamente, especificar suas possibilidades, características, fluxos, territórios e agentes. Neste ensaio, pretendo abordar dois elementos fundamentais e formadores da paisagem das cidades:os espaços de aglomeração e os espaços do vazio, elementos estes que considero matrizes não apenas dos fluxos criativos, mas também da própria essência da existência urbana, sua forma, memória, abstração.

A aglomeração e o vazio: as duas faces de uma moeda.

Na paisagem urbana a aglomeração e o vazio estabelecem os campos de força, fluxos e suportes para as quais se voltam as experiências estéticas e poéticas dos artistas, agora, também, interventores, conscientes disto ou não. Também determinam certos modelos de ocupação, intervenção e planejamento urbano. As pessoas do lugar possuem relações diversas com um e com outro. Geralmente se prefere o espaço da aglomeração para o desenvolvimento das atividades sociais, econômicas e culturais. Por outro lado, se delega o vazio ao campo do inexistente, do indefinível, do vácuo, do não-lugar: o vazio do Buraco da Palmeira, por anos abandonado, transformado em receptáculo do lixo, da flora caótica urbana, refúgio de vagabundos e marginais, em contraste com a aglomeração da Presidente Vargas/Praça da República, espaço das tribos, dos religiosos do círio, das marchas de Sete de Setembro, dos protestos e das celebrações da paz.

 Aglomeração de pessoas na Praça da República.

Existem diversos tipos de aglomerações ou conurbações [2] urbanas: há aglomerações de pessoas, de veículos, de tribos urbanas, de edificações. Da mesma forma há diversos tipos de vazios: vazios de pessoas no espaço arquitetônico, vazios de edificações nos terrenos, vazios de veículos em ruas e “parkings”. Porém a sua característica mais importante é a da perda de referências. Na ausência de elementos referenciais, o vazio se torna a própria referência na paisagem. Enquanto que nas aglomerações, como processo natural de orientação em meio à complexidade, torna-se absolutamente necessária a eleição de referenciais (falo aqui principalmente em termos arquitetônicos).


Parking vazio em Niagara Falls, EUA.

No geral, as metrópoles representam a pura conurbação. Os vazios parecem se manifestar, por outro lado, como células-refúgio espalhadas caoticamente pelo seu território. Durante muito tempo observei esses refúgios na paisagem urbana de Belém, aos quais chamei de “paraizos”, em referência ao andar mais alto do Teatro da Paz. Notei que esses lugares vazios (vazios de edificações ou vazios de pessoas) eram bons locais para leitura, meditação ou simplesmente estações de descanso e fuga das aglomerações urbanas. O vazio urbano é como o seio da lactante, sempre pronto para oferecer aconchego, mas também tão incerto quanto a vagina da prostituta, onde se encontra não apenas as possibilidades de prazer, mas também o lugar do perigo, onde pequenos grupos de excluídos, marginais, que também buscam o refúgio, encontram no espaço vazio o lugar de morada.

A ocupação do vazio: o espaço de combate.

O aspecto vazio da metrópole é repelente e estéril. A aglomeração é sedutora e fértil. O coletivo busca a aglomeração, mesmerizada pela dinâmica. O coletivo evita, repugna o vazio. Porém, como campo negativo, o vazio urbano reflete os ecos da coletividade. Nesse âmbito, insere-se num sentido de campo gerador, matriz, prenhe de toda dinâmica e intensidade. Nelson Brissac Peixoto, ao refletir o papel do vazio na paisagem urbana diz que ele “(...) contém também a expectativa da mobilidade, a possibilidade do outro. O terreno vago é também o espaço do possível. Toda história da reação ao terreno vago, desde a percepção dos fotógrafos até as intervenções do planejamento urbano, tem sido no sentido de evidenciar a ansiedade diante da sua indefinição e erradicar sua negatividade. Ela reflete a dificuldade de lidar com a cidade em termos de forças, fluxos, em vez de formas” [3]. Então podemos compreender por que o elemento vazio da paisagem aqui também pode ser estabelecido como o espaço de combate contra a especulação e a necessidade de ocupação destes lugares pelas forças de intervenção pública ou privada. Por outro lado, pode-se perguntar: “O vazio, por fazer parte do cenário urbano, também não se insere no coletivo?” Não, a aglomeração é coletiva. A experiência do vazio tende ao individual.
Há vazios nas cidades em que a especulação imobiliária não tem acesso e talvez nunca terá. Esses vazios são os espaços das praças antigas cravadas no meio de bairros ou zonas de preservação histórica ou áreas portuárias, muitas vezes zonas sem qualquer atividade comercial, zonas residenciais de baixa densidade, ruas do centro histórico em que a vizinhança é introspectiva e reclusa.


Praça vazia no centro comercial de Belém.

Consideremos que toda intervenção significa a interferência em algo, então devemos estar conscientes do lugar de nossa intervenção. Na paisagem urbana não há apenas os espaços de aglomeração e de vazios, mas também espaços intersticiais onde as características de um e de outro se manifestam, seja de forma perene, seja de forma transitória. Num certo sentido, por ser a intervenção um sinônimo de interferência, para muitos artistas parece não importar o lugar dessa interferência: o que importa é “interferir”. E o público dessa interferência parece ser sempre a aglomeração, numa celebração da cultura de massas, pois no vazio não há publico, porém abandono, indiferença, o lugar da descongestão, o no man’s land do qual fala Wim Wenders sobre a paisagem urbana [4]. Poucos realmente se aventuram nos espaços vazios.
Um aspecto que denota uma falsa noção de espaço vazio das metrópoles diz respeito às zonas fora das cidades, suas bordas, os arredores livres, fora dos centros urbanos, até mesmo zonas industriais. Esses espaços estão mais relacionados com a “geologia abstrata” de Robert Smithson [6], cujas obras se relacionam exclusivamente com lugares ermos, não-habitados, nos limites do rural, mais ainda próximo da metrópole, porém suficientemente fora da sua paisagem para se designá-los como vazios urbanos. Os vazios urbanos possuem um sentido quase rizomático de complexidade que os tornam diferentes dos espaços livres rurais. Quanto mais nos afastamos dos centros urbanos, abandonando os limites da vida metropolitana, adentramos nos territórios marcados pela monotonia, até que eles se transformem totalmente em meio rural. Tais espaços, explorados por Robert Smithson em “The Monuments of Passaic” e por Richard Serra em “Shift” (Deslocamento), sendo o primeiro nos arredores de New Jersey e o segundo nos arredores de King City, Ontário, são desprovidos de qualquer urbanidade, o que torna tais espaços como zonas-refúgios DA cidade e não como zonas-refúgios NA cidade.


Robert Smithson – The Monuments of Passaic, 1967.

Aglomeração – Vazio – Arte – Cidade.

Gostaria de propor, com este ensaio não somente uma reflexão sobre os espaços de aglomeração e vazio dos cenários urbanos, mas também uma “cartografia do refúgio”, ou uma Cartografia do Vazio, mapeando todos esses lugares em potencial, registrando suas características, peculiaridades territoriais, fluxos e agentes (habitantes, fauna, flora etc.).
Expor na cidade vem se tornando uma opção para artistas que vêem nas aglomerações urbanas, mesmo em suas reações mais indiferentes, um público para suas intervenções. O espaço da galeria, espaço individual e institucional, torna-se inadequado. Buscar a aglomeração urbana tem sido um paradigma para a arte contemporânea em busca de visibilidade, de dinâmicas e de intensidades.
A arte da cidade, a arte pública no espaço urbano enquanto tal é um processo de devir incessante, ininterrupto. Isso se deve pela condição metropolitana de receber fluxos de ordenamento e caos, que Adrián Gorelik, ao falar de Rem Koolhaas em seu prefácio a Nova York Delirante, define como “o máximo de controle para o máximo de descontrole” [5]. Atuar nessa paisagem se encontra na postura reflexiva de cada um pronto para tanto. Da mesma forma como adentrar uma galeria denota uma predisposição do observador em contemplar a obra de arte, na cidade sua arte exige a predisposição para a sua percepção: no silencio do observador, no momento fugaz do pensador-amante da arte no cenário urbano.
Ainda na metáfora com a galeria, a metrópole da aglomeração é a vernissage da exposição de arte, onde todos se encontram, numa balbúrdia de sentidos, interesses e dinâmicas. Dessa forma, retiram-se o que é comum às ruas e colocam-se na galeria, e como retroalimentações retiram-se a pintura, a escultura e a instalação da galeria e espalham-se pelo espaço público da cidade. Desenvolve-se assim uma “arte e estética relacional” de cuja evolução Nicolas Bourriaud, de forma precisa, estabelece dentro dos limites do urbano:
“Em termos sociológicos gerais, essa evolução deriva, sobretudo, do nascimento de uma cultura urbana mundial e da aplicação desse modelo citadino a praticamente todos os fenômenos culturais. A urbanização generalizada que se desenvolveu após o final da Segunda Guerra Mundial permitiu um aumento extraordinário dos intercâmbios sociais e uma maior mobilidade dos indivíduos (graças ao desenvolvimento rodoferroviário e das telecomunicações e à progressiva abertura dos locais isolados, simultaneamente a uma maior abertura das mentalidades).” [7]
Sendo assim, podemos considerar os mesmos processos de devir espacial, fluxos sociais e fenômenos coletivos no jantar servido numa galeria por Rirkrit Tiravanija, na sopa servida numa feira pelo feirante ou na prática de grupos de caridade que servem comidas a mendigos numa rua do centro após o expediente comercial. A diferença se insere no contexto do suporte, da intenção e de um conceito: Tiravanija tem a galeria, quer subverter usos, quer desenvolver uma nova estética; o feirante atua no bairro, na rua, na feira e nada quer senão o comércio; e os caridosos empresários querem ajudar a diminuir o sofrimento humano na cidade. Assim, o conflito entre suportes se encontra instaurado, e imediata e devidamente teorizado no triunfo da pós-modernidade urbana.

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* Arquiteto e urbanista, mestrando em artes pela Universidade Federal do Pará.

Notas.
[1] Françoise Choay. O Urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 1.
[2] Conurbações: neologismo criado por Patrick Geddes no seu livro Cities in Evolution (1915) para designar aglomerações urbanas, cidades-satélites e outros agregados urbanos que se desenvolvem devido ao poder atrativo da metrópole.
[3] Nelson Brissac Peixoto. Paisagens Urbanas. São Paulo: SENAC, 2004, p. 398.
[4] Wim Wenders. A Paisagem Urbana. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, p. 189.
[5] Rem Koolhaas. Nova York Delirante: um manifesto retroativo para Manhattan. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 12.
 [6] “(...) Vários agentes, tanto ficcionais quanto reais, de alguma maneira trocam de lugar entre si – é impossível evitar o pensamento lamacento quando se trata de projetos de terra, ou daquilo que chamarei de ‘geologia abstrata’. A mente e a terra encontram-se em um processo constante de erosão: rios mentais derrubam encostas abstratas, ondas cerebrais desgastam rochedos de pensamento, idéias se decompõem em pedras de desconhecimento, e cristalizações conceituais desmoronam em resíduos arenosos de razão.” Robert Smithson. Em: Escritos de Artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro, 2006, p. 182.
[7] Nicolas Bourriaud. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009.

A Cidade em Trânsito


Walter G. Rodrigues Junior

 
Cinco da matina “acorda moleque” tá na hora de levantar pra ganhar o trocado. Deco levanta sonolento, mais um dia se inicia e não dá para perder tempo a viagem até o trabalho é longa. Os cinco irmãos menores ainda dormem. Deco toma um banho gelado “água de poço”, depois esquenta em uma pequena panela amassada a água pra fazer o café “bom que hoje tem”, toma um gole “puta que pariu” não tem açúcar, vai assim mesmo.
 
Cinco e meia Deco sai de casa, ainda está escuro, mais ele não pode perder o ônibus Icuí Guajará Presidente Vargas de cinco e quarenta e cinco, o próximo só às seis e meia e vem entupido de gente. Até a parada Deco leva uns dez minutos “no pique”, ainda bem que ele conhece a malandragem.

O ônibus está chegando à parada e Deco atravessa a pista correndo e fazendo sinal para o motorista “ufa na hora”. A carona é garantida o motorista sabe que Deco é trabalhador, ele senta no final do ônibus, último assento, mesmo lado da porta de descida, a cadeira da janela, sua televisão ligada no programa favorito “a cidade em trânsito”.

A viagem é longa Ananindeua – Belém, Deco já está acostumado, até a Praça da República dura no mínimo uma hora e meia. Cenas urbanas se passam diante de seus olhos enquadradas em sua janela favorita “pela janela vejo fumaça vejo pessoas, na rua os carros no céu o sol e a chuva...”, e a viagem continua, ele observa uma certa familiaridade no rosto das pessoas que entram ao ônibus, são quase as mesmas pessoas de todos os dias, todos se reconhecem, ninguém se fala, seria o ônibus um não lugar?

Avenida Almirante Barroso “até que enfim”, Deco se ajeita na cadeira para melhor visualizar as meninas do colégio Paes de Carvalho com suas saínhas plissadas, na parada do conjunto Costa e Silva. O ônibus já está lotado não entra nenhuma delas “que pena”, mas tudo bem, ainda há muito o que se observar em sua janela móvel da cidade.

Belém amanhece com um movimento intenso, ainda não deu seis e meia, parece que a cidade não dormiu, Deco não se admira mais com o fluxo pulsante da metrópole, ele faz parte dessa dinâmica, o ritmo frenético da cidade combina com o seu cotidiano. Carros, motos, ônibus e vans disputam espaço na avenida, acompanhados por uma trilha sonora de buzinas e roncos de motor “coisas de cidade grande”.

Ônibus em movimento, Deco observa pela janela a paisagem urbana passando muito rápido diante dos seus olhos, às vezes mal dá para diferenciar um outdoor de uma fachada tudo fica achatado. “quanto mais rápido o movimento, menos profundidade as coisas têm, mais chapadas ficam, como se estivessem contra um muro, contra uma tela. A cidade contemporânea corresponderia a este novo olhar [...] a paisagem urbana se confundindo com outdoors. O mundo se converte num cenário, os indivíduos em personagens. Cidade-cinema. Tudo é imagem”* diz Nelson Brissac Peixoto.

Uma família de moradores de rua dorme em frente ao supermercado Almirante em São Brás, sobre jornais e papelões, uma mulher, três crianças e um homem se agasalham ocupando um espaço de pouco mais de um metro quadrado. As pessoas transitam como se lá não houvesse ninguém, estão invisíveis à olho nu, Deco observa a cena com indiferença “já vi esse filme”.

É quarta-feira, dia de peixe no restaurante popular, “melhor chegar cedo pra garantir o almoço”, ainda não é nem sete da manhã e Deco já está pensando no rango. Uma cena chama a atenção na subida da Avenida Presidente Vargas, um gringo alto, branco, com cabelos e barba ruiva, vestindo bermuda e camisa de tecido estampado, aparentando ter uns cinqüenta anos de idade caminha abraçado com Katerine Sheyla, um travesti muito conhecido no Bar do Parque “parece que a noite foi longa”.
 
Finalmente Deco chega ao seu destino. Salta na parada de ônibus em frente a Lojas Americanas na Avenida Presidente Vargas, “valeu motora”, atravessa a rua correndo e já vai marcando seu território “aqui patrão pode estacionar”. Deco é flanelinha e seu ponto é na Praça da República em frente ao Instituto de Ciências das Artes (ICA) da UFPA, conquistar este espaço foi difícil e levou tempo, mas Deco é virado.

Hora do lanche “lá vem o cara do completo”, um copo de suco e um salgado por R$ 1,00 “segura aí, depois te pago”. Enquanto come Deco não descuida do estacionamento, a qualquer momento alguém pode chegar ou sair, ele têm que auxiliar pra garantir o trocado. Começou mais um dia de trabalho.

 
Texto apresentado à disciplina Arte no Espaço Urbano
 
 
* PEIXOTO, Nelson Brissac. O Olhar. Texto: O Olhar do Estrangeiro (org.) Adalto Novaes 6ª reimpressão p. 361

nós habitamos as cidades. as cidades habitam em nós.*

Natali Ikikame



















Era como ver a definição de “ausência” no dicionário.
Sempre tenho essa impressão quando percebo seja em janelas ou pátios de casas, algum idoso. O seu olhar marcado pelo tempo, ora vago, ora inquieto, que não deixa escapar muito, só me remete enfim, ao enigmático.  Se existisse um dicionário das “palavras e seus conceitos imagéticos”, esse talvez fosse um bom exemplo, por assim dizer, da palavra “ausência”. Mas me ocorre também, o contrário. O lado “cheio” da ausência. Não se trata aqui de polos opostos, mas de pontos de encontro.  
A ausência na sua contingência

Seriam, pois, tais personagens tão cotidianos e ao mesmo tempo tão “invisíveis” no ambiente urbano, extensões de nós mesmos? Extensões de nossos desejos, medos, amores... Nossas identidades? O que é afinal identidade? Conhecer o seu lugar? Conhecer o seu valor? A reconciliação entre a imagem que criamos de nós mesmos e “nós mesmos”?  Mas quem seria esse “nós mesmos? Uma imagem projetada e que tentamos nos aproximar? Máscaras que desconfiam do sentido puro: ela quer sentido, mas ao mesmo tempo quer que esse sentido seja cercado pelo ruído.

Para além de seu entendimento enquanto um aglomerado de ruas, favelas, casarios, praças, mangueiras, letreiros, fachadas, até mesmo o vestuário ou ornamento com que as pessoas se movem e recitam a sua parte na dimensão cênica da cidade, as cidades não poderiam ser somente seus objetos, mas também, os que a habitam. A massa. O indivíduo. O coletivo. O privado. Extensões humanas. Extensões de vidas. A cidade é o coração e a condição de nossa existência hoje.

As pessoas compõem o cenário urbano. A cidade reflete as pessoas que transitam seu espaço, seu lugar. Como seria uma cidade destituída do seu fator cultural? Ausente dos elementos que nela despejam significados e sentidos? Atget1 talvez já tenha nos proporcionado tal sensação. Uma cidade sem seus habitantes é uma cidade fantasma. Embora tal experiência nos transporte para uma dimensão outra. Uma percepção fenomenológica e onírica do espaço urbano. O silêncio enquanto possibilidade
de fruição. O apagar das luzes.

Contudo, ao refletirmos o seu inverso, a cidade parece diluir-se. Porque assim como a ausência das pessoas causa estranhamento, sua onipresença nos desloca para uma quase vertigem. O “controle” nos escapa. A cidade adquire vida e independência. Seus personagens dialogam com o concreto, com o infinito dos becos. Talvez essa seja a singularidade do espaço urbano. Abarca em seu território muito mais  que a alteridades dos pares, mas a eloqüência dos ímpares. 

A loucura, a sanidade, a alienação, a inocência, a solidão, a multidão... O viver citadino não escolhe seus personagens. Todos estamos submersos no líquido que flui pelas ruas, elevadores, calçadas, portas...O separar e o ligar são apenas dois aspectos de um mesmo e único ato. Assim, convivemos. Como os moradores que habitam o Hotel de Um Milhão de Dólares de Wenders2. Muito mais que personagens excêntricos, os moradores do One Million Dollar Hotel são um reflexo de nossa sociedade. Um espelho que transcende a ficção. 

O estigma do movimento está na cidade. O movimento é quase sempre, veloz. Quando se pensa estar em um lugar, simplesmente não o é mais. A cidade nos envolve em seu fluxo. É um (des)encadeamento de episódios, de cenas. Mesmo sendo uma percepção inerente a sua natureza, não podemos ignorar o sentido nostálgico que o tempo apreendido pela cidade nos desencadeia. É como algo que desaparece e, se você passar muito tempo sem pensar nele, não haverá de trazê-lo de volta. Recordar não é um ato de vontade afinal. É algo que ocorre a despeito de nós, e, quando há muita coisa mudando ao mesmo tempo, o cérebro vacila e os objetos lhe escapam. 

A dimensão temporal. São olhos que já viram e foram vistos. Talvez esse seja um dos fatores que fazem das pessoas idosas um relicário a ser notado. Um personagem urbano que conhece os endereços com a palma da mão (ou ao menos persistem em conhecer). O sujeito não é senão o agente da desaparição das coisas. E essa percepção de perda e ausência que vem atrelado às pessoas, que nos move a pensar em nosso lugar. Em nossa condição no mundo. Num tempo mais lento. Um banco na praça.

*Texto apresentado à disciplina Arte no Espaço Urbano orientado pelos professores Dr. Luizan Pinheiro e Dr. Ubiraélcio Malheiros do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará – PPGArtes – ICA/UFPA como requisito de avaliação.

1Eugène Atget (Paris12 de fevereiro de 1856 ou 1857 - 4 de agosto de 1927) - Foi um fotógrafo francês que com seu olhar desviado do ser humano, fotografava o vazio das ruas parisienses, e objetos inusitados.

2Wim Wenders (Düsseldorf,  14 de agosto de 1945) – É um cineasta alemão que aborda em muitos de seus filmes a temática da cidade e o espaço urbano enquanto depósito de subjetividades.

REFERÊNCIAS

ARGAN, Giulio Carlo. A História da Arte como História da Cidade.
Trad. Pier Luigi Cabra – 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

AUSTER, Paul. No país das últimas coisas. Trad. Luiz Araújo. São Paulo:
Editora Best Seller, 1987.

BARTHES, Roland. A Câmara Clara: Nota sobre a fotografia.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. Trad. Anamaria Skinner.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ N Imagem, 1997.

COELHO, Teixeira. Arte na Metrópole. In: Revista BRAVO. A Bienal da Cidade.
São Paulo, nº 54, março de 2002 - Ano 5.

WENDERS, Wim. A identidade de Nós Mesmos – Documentário 84min., 1982.