10 de ago. de 2010

ENTRE BRs




Simone Jares*

Há pouco me dei conta que vivi nestes quarenta anos de existência entre BRs. Vivência marcada pela velocidade, pelos sons e cheiros urbanos.  Taboão da Serra, terra de imigrantes, principalmente de japoneses e nordestinos, situa-se nessa imensa via que comunica São Paulo às cidades do sul e vice-versa. Morei toda minha infância na ilharga da “Rodovia da Morte”, era assim que a BR-116 - a Régis Bittencourt - era noticiada nos jornais da década de 70. Inaugurada por JK, símbolo do desenvolvimento e integração do sudeste ao sul do país! Só quem viveu por lá, pôde entender a outra face do desenvolvimento... Lembranças lamacentas das enchentes do Pirajussara que atravessaram a vida de tantas famílias, inclusive a minha. Durante horas, esperávamos a água baixar. Misturados aos eletrodomésticos, brincávamos no segundo andar do beliche. Tensão e alívio: passamos por mais uma! Nas paredes de casa, as marcações do barro desprendido do morro, testemunhavam a fúria de um rio.  Hoje quando vejo o desespero em cadeia nacional na TV, em torno do mesmo problema da ocupação urbana desordenada, rememoro... com um olhar que perdeu a ingenuidade e a fantasia infantis.

No Taboão, era assim, além das enchentes sazonais, a paisagem serrana rodeada de eucaliptos, contrastava com a paisagem fabril da auto-estrada. Juntos, eu, primos e amigos de rua, andávamos aproximadamente dois quilômetros desse corredor de fábricas que era a BR-116... Massey Fergunson, Sadia, Niasi... até chegar à “Cidade Intercap”, escola que ficava no alto de um morro. Nos primeiros anos de estudante, de manhãzinha, minha avó nos levava e meio-dia, lá estava ela, no portão da escola a nossa espera. No tempo em que soletrava as primeiras letras, devorava tudo pela frente, inclusive os muros pichados pelos quais passava no percurso da escola. Quando tinha um “vai tomar no cu”, minha avó me repreendia ao final da frase, antes que eu experimentasse o prazer de soletrar o “c-u”. Dizia-me que era feio menina falar palavrão.  Ficava chateada com ela, mas obedecia. Depois, crescemos o suficiente para irmos sozinhos sem a presença de um adulto, o que ficava muito mais divertido, porque brincávamos o tempo todo, alheios ao movimento intenso dos carros. 


Ônibus, só pegávamos eventualmente quando íamos até São Paulo para passear ou ir ao médico. Era uma viagem longa de quase duas horas de duração. Praticamente uma viagem até Mosqueiro. Os adultos provedores da casa, minha mãe e tios, saíam ainda de madrugada rumo ao trabalho na capital, só retornando ao final da noite, quando as crianças já estavam na cama. Reunião da família completa, somente nos finais de semana. Cidades como Taboão, naquela época, embora tivessem um parque industrial em expansão, não ofereciam oportunidades de emprego suficientes aos seus habitantes. Vivíamos em uma “cidade-dormitório”, como preconizavam os estudiosos de sociologia urbana.

Ananindeua como Taboão são cidades que se desenvolveram ao longo de uma estrada, não-lugares, referências tão urbanas... Da janela do ônibus, tenho uma outra visão: plana paisagem, contudo, cheiros e sons são os mesmos de meus tempos de infância.  O trânsito não passa despercebido, até o Entroncamento, filas de veículos enlouquecidos. Ansiedade. Todo dia. Essa sensação me acompanha até que adormeço. A cidade está dentro do coletivo. O coletivo é a cidade. Não há como escapar dessa intensa convivência passageira...  Avisto a passarela e a frase (que sempre me faz pensar em sexo) “Mais gostoso a qualquer hora” - do outdoor de um grande supermercado - , avisa a hora de descer do ônibus.

Viver entre BRs tem dessas coisas... certos estranhamentos como se estivéssemos sempre de passagem, em trânsito. Quando minha família retornou a Belém, ainda era uma pré-adolescente, muito aborrecida com a mudança de endereço. Apesar de conhecer a cidade a partir da ótica de uma turista mirim em férias escolares, morar significava recomeçar: aprender novos costumes, fazer novos amigos, deixar-se entranhar pela cultura do lugar. Custava a aceitar que esse envolvimento acontecesse rapidamente. Enganei-me. Atravessar o viaduto da BR-316, foi como passar por um portal que me conectava à infância, às referências de uma migrante. Respirei fundo, sorvendo com vontade aquele cheiro de BR tão familiar... e pensei: estou em casa de novo!



*Trabalho final da disciplina Arte no Espaço Urbano
09/08/2010

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