Daniely Meireles*
a distância...
O céu continua vago sobre o tempo adoecido.
Os sentidos me avisam que vai chover e um pedaço da cidade chora. As marcas que vejo daqui, nem de perto parecem aquela do passado. Linhas esparsas preenchem a superfície suada e peço mais uma dose para molhar a garganta. Não é fácil perceber seu lugar ocupado. O sangue esquenta, a impotência grita, dá vontade de diluir em meio aos escombros. Mas não tem como evitar, às vezes. Instantes longitudinais revelam corpos abertos para o quebranto e sinto que as marcas deixadas contam parte do medo escondido. Todas as formas e todas as cores parecem misturar-se com a fumaça. Algumas moscas perturbam meu copo e meu sanduíche. À noite, todos se fecham. A rua corre em direção à lama. A lama derrete nos corpos suados. Os corpos dançam uma música torpe. O medo trafega sem qualquer sobreaviso. Mente-Noir. O filme que vejo agora traduz um pouco do cenário enlatado em que me encontro, mas percebo que a indiferença não tem muito a ver com isso. Trata-se dos efeitos da história; das vozes não ouvidas; dos corpos transitórios; daqueles dias em que por mais que você queira as coisas não acontecem. Momentos que pedem modestas doses de anestésico, que passeiam pelo corpo ampliando os sentidos, justificando a pegada e fazendo com que o pensamento crie novas formas de (des)controle.
Recordo os idos em que o cenário era preto-e-branco, quando tudo era mais simples. Sem amontoados, sem estufas, sem fortes odores. Tudo asséptico... e sem cores. Recordo aquele tempo e reverencio meus antepassados. Mas entendo que as mortes foram necessárias, para que a nova pele pudesse ser criada. E a mão criou a luz e com a luz veio a cor. E viu que tudo era bom. A cidade, como os sonhos, são construídas por desejos e medos. A chuva enfim chega de forma imponente. Procuro abrigo entre os carros, pisando em fractais de água e diesel. O silêncio tenta conquistar seu espaço. Um pedaço da cidade chora quase todas as noites e sempre a mesma hora.
o toque...
A mão sente o asfalto latejando, como a pele pedindo para ser tocada, ferida. A linha marca. Sente que naquele corpo urbano dá pra fazer um estrago e passa a existir, pelo menos na mente daquele que delira: “Uma coisa é o pensamento, outra a ação, outra a imagem da ação”, sussurra Nietzsche. A mão continua construindo objetos-ingênuos sem nome. Os verdadeiros autores não precisam de assinatura. Apenas fazem. “Não é com raiva, mas com riso que se mata!”, Nietzsche esbraveja. E o calafrio anuncia a morte. A cidade logo se desbota. Calvino também me acompanha e me transporta para dentro da ingenuidade tatuada em placas e fachadas. As cidades daquele instante me traspassam. O medo e o barulho se intensificam, fazendo testemunhas de um ritual de luz e hálitos quentes. O olho arde, mas insiste em sustentar um corpo, comovido por um certo impacto do mundo. O olho é todo corpo! E adentra a cidade como sua eterna e única casa.
Chagall se anuncia. A noite impera no tempo e a luz branca cega os olhos. A mão então toca. Olha seu corpo pálido e apaga todas as marcas de nascença. Desenha em sua palma um grande olho colorido, que pisca de vez em quando. A cidade aparece colorida também. Um fauno surge dançando. O olho colorido da palma da mão pisca mais uma vez. A noite é uma ameaça de eternidade. Chagall coloca luz em meus ouvidos, mas apaga o olho antes desenhado. As cidades se multiplicam e sorriem juntas. Os olhos continuam cegos, mas constroem epifanias. Chagall me guia. Para viver é preciso sempre trair fantasmas.
*Texto entregue à Disciplina Arte no Espaço Urbano em 30/06/2010.
REFERÊNCIAS:
BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. Trad. José Américo M. Pessanha et al. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
CALVINO. Ítalo. As Cidades Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. In: Os Pensadores. Vol. 41. Trad. Marilena Chauí. Rio de Janeiro: Ed. Abril, 1975.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2000.
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