20 de jul. de 2010

Cores no Dique - Mauricio Adinolfi


O "Cores no Dique" nasceu de uma pesquisa sobre as novas possibilidades da pintura na arte contemporânea, propondo um intercÂmbio entre o Ponto de Cultura Arte no Dique localizado na Comunidade do Dique, no Bairro de Vila Gilda, Santos-SP-Brasil, e o artista plástico Maurício Adinolfi, que, por meio de residência artística, promoveu uma intervenção nas casas do local. 
O projeto - fruto do prêmio Interações Estéticas patrocinado pela FUNARTE - foi iniciado contatando as lideranças comunitárias, formando reuniões entre a população e posteriormente realizando encontros de formação, discussão com moradores e escolha das casas que seriam trabalhadas. Após esses encontros, iniciou-se o trabalho de impermeabilização e pintura dos madeirites, mutirões comunitários para a composição das pinturas e substituição destes.

*Texto retirado do catálogo Cores no Dique - Mauricio Adinolfi


A Exposição Cores no Dique está aberta ao público na Galeria Theodoro Braga de 20/07 a 30/08/2010.

 

Programação Especial: BATE-PAPO COM O ARTISTA - 22/07/2010 ÀS 19H
Local: Galeria Thedoro Braga - Centur
Informações: 3202-4313

10 de jul. de 2010

TUDO O QUE SEI DE TI ESTÁ NA PALMA DA MINHA MÃO

Daniely Meireles*
a distância...
O céu continua vago sobre o tempo adoecido.
Os sentidos me avisam que vai chover e um pedaço da cidade chora. As marcas que vejo daqui, nem de perto parecem aquela do passado. Linhas esparsas preenchem a superfície suada e peço mais uma dose para molhar a garganta. Não é fácil perceber seu lugar ocupado. O sangue esquenta, a impotência grita, dá vontade de diluir em meio aos escombros. Mas não tem como evitar, às vezes. Instantes longitudinais revelam corpos abertos para o quebranto e sinto que as marcas deixadas contam parte do medo escondido. Todas as formas e todas as cores parecem misturar-se com a fumaça. Algumas moscas perturbam meu copo e meu sanduíche. À noite, todos se fecham. A rua corre em direção à lama. A lama derrete nos corpos suados. Os corpos dançam uma música torpe. O medo trafega sem qualquer sobreaviso. Mente-Noir. O filme que vejo agora traduz um pouco do cenário enlatado em que me encontro, mas percebo que a indiferença não tem muito a ver com isso. Trata-se dos efeitos da história; das vozes não ouvidas; dos corpos transitórios; daqueles dias em que por mais que você queira as coisas não acontecem. Momentos que pedem modestas doses de anestésico, que passeiam pelo corpo ampliando os sentidos, justificando a pegada e fazendo com que o pensamento crie novas formas de (des)controle.
Recordo os idos em que o cenário era preto-e-branco, quando tudo era mais simples. Sem amontoados, sem estufas, sem fortes odores. Tudo asséptico... e sem cores. Recordo aquele tempo e reverencio meus antepassados. Mas entendo que as mortes foram necessárias, para que a nova pele pudesse ser criada. E a mão criou a luz e com a luz veio a cor. E viu que tudo era bom. A cidade, como os sonhos, são construídas por desejos e medos. A chuva enfim chega de forma imponente. Procuro abrigo entre os carros, pisando em fractais de água e diesel. O silêncio tenta conquistar seu espaço. Um pedaço da cidade chora quase todas as noites e sempre a mesma hora.
o toque...
A mão sente o asfalto latejando, como a pele pedindo para ser tocada, ferida. A linha marca. Sente que naquele corpo urbano dá pra fazer um estrago e passa a existir, pelo menos na mente daquele que delira: “Uma coisa é o pensamento, outra a ação, outra a imagem da ação”, sussurra Nietzsche. A mão continua construindo objetos-ingênuos sem nome. Os verdadeiros autores não precisam de assinatura. Apenas fazem. “Não é com raiva, mas com riso que se mata!”, Nietzsche esbraveja. E o calafrio anuncia a morte. A cidade logo se desbota. Calvino também me acompanha e me transporta para dentro da ingenuidade tatuada em placas e fachadas. As cidades daquele instante me traspassam. O medo e o barulho se intensificam, fazendo testemunhas de um ritual de luz e hálitos quentes. O olho arde, mas insiste em sustentar um corpo, comovido por um certo impacto do mundo. O olho é todo corpo! E adentra a cidade como sua eterna e única casa.
Chagall se anuncia. A noite impera no tempo e a luz branca cega os olhos. A mão então toca. Olha seu corpo pálido e apaga todas as marcas de nascença. Desenha em sua palma um grande olho colorido, que pisca de vez em quando. A cidade aparece colorida também. Um fauno surge dançando. O olho colorido da palma da mão pisca mais uma vez. A noite é uma ameaça de eternidade. Chagall coloca luz em meus ouvidos, mas apaga o olho antes desenhado. As cidades se multiplicam e sorriem juntas. Os olhos continuam cegos, mas constroem epifanias. Chagall me guia. Para viver é preciso sempre trair fantasmas.

*Texto entregue à Disciplina Arte no Espaço Urbano em 30/06/2010.



REFERÊNCIAS:

BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. Trad. José Américo M. Pessanha et al. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.

CALVINO. Ítalo. As Cidades Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. In: Os Pensadores. Vol. 41. Trad. Marilena Chauí. Rio de Janeiro: Ed. Abril, 1975.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2000.

SOBRE A CIDADE E OUTROS HIPÉRBATOS

Daniely Meireles*
Espasmos, desespero e um pouco de tosse. A cabeça lateja em meio ao alvoroço das ruas. Passeio tentando encontrar Zaíras, Anastácias, Tamaras, Irenes, mas o corpo dói um pouco. O olho mergulha num plano de possíveis curas. As janelas, o amontoado, as coisas já não pedem mais a exatidão do tempo e do espaço; buscam agora novos meios de afetar, mesmo que tardiamente, o pensamento passivo dos que passeiam em paralelepípedos de passado e poeira, aqueles que acreditam em seus discursos empobrecidos de glória colonialista. Pobres coisas. O corpo e a cabeça doem e começo a chegar em cidades-outras; cidades onde o cheiro de enxofre e os contrastes de claro-escuro constroem cenários de eloqüência subversiva, desejos profanos; vontades diversas. Vejo o universo de Caravaggio pintado em óleo sobre uma tela de pele. Não sinto aqui o frescor matutino de um dia de chuva, somente o hálito quente das cidades que nunca dormem. As cidades do acaso começam a ensaiar sua dança. Pessoas amarelas, azuis e vermelhas até tentam encontrar um lugar pra dormir, mas não existe lugar seguro nas cidades de muros sulfúricos. Ao correr alguns metros, entro no plano de imanência de uma outra cidade que não tem nome. Chamo-a cidade e começo a flertar com seu corpo e seus olhos. Um corpo volátil, mas presente e forte. “Quando começa o tempo e onde termina o espaço?”. Pergunto com um olhar carinhoso. Ela responde com suas cicatrizes. Apesar de luminosa, a cidade possui um breve sinal de cansaço, como se o tempo e o espaço vivessem a comê-la sofregamente, num gesto impensável de luxúria. A luz embriaga, extasia, mas causa uma cegueira momentânea. Cegueira que não me permite enxergar sua morte. Tateio, triste, e saio então da cidade-luminosa-de-dias-poucos. Desperto em meio à paisagem cinzenta das mangueiras. A gente caminha e o silêncio caminha comigo fazendo as obrigações de marido companheiro. Cenário amarelo, calor insistente, faixas, asfalto, concreto e muita, muita carne. Os passos escalam ruínas de vapor embriagante. A razão procura um poste para apoiar a vertigem. Um calafrio percorre a espinha e sinto frieza ao ver um estupro: é a marca entrando com tudo na cidade toda aberta; ela gosta e a mão continua socando. Os músculos pulsam em movimentos rápidos. O suor derrama. A mão soca. A cidade goza um gozo vermelho. Os líquidos espirram. A Cidade-Real goza. Agradece ao estupro. Olha maliciosamente. Sorri. E finalmente descansa. Os passos fogem querendo um refúgio. A realidade persiste, mas o plano de imanência continua. “Quando começa o tempo e onde termina o espaço?

* Texto entregue à Disciplina “Arte no Espaço Urbano” (Prof. Dr. Luizan Pinheiro) – Em 18/05/2010